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Ondas

Vamos surfar? Você convida, absorto. Mas não estende a mão de verdade, ainda que ensaie o movimento.
Antes, observa.  Não gosta de empolgar-se com nada. Nem de parecer indispensável. Quase consigo ouví-lo pensar: Não posso deixar que dependa de minha mão.
É uma perspectiva interessante, sorver o caos, como nos quadrinhos. Talvez, se eu pudesse voar e andar de máscaras, parecesse mais legal subir na gágula mais feia do prédio mais alto do dia mais frio. Olhar o caos como quem sabe que precisa dele como precisa de pulmões.
(Eu não preciso de coração, sério!)
Mas eu não uso máscaras. (E aqui, você ri)
Ok, eu uso, mas elas estão muito grudadas na minha pele. Pouca gente vê, afinal, a ninguém interessa. Mas faz parte da mentira afirmar coisas como essa. Elas sustentam a máscara. Ela dói menos quando a gente treina em fazê-la sumir. Ainda que seja tudo mentira, todo mundo toma sua pílula vermelha, religiosamente.
E hoje eu brinquei de coisas feias, admitindo que o que faço e me dá identidade (e aqui, você gargalha, pois é mais fácil tecer nuvens do que a identidade realmente existir) Enfim, hoje eu menti, pisei no altar mais sagrado, cuspi nos segredos mais secretos, no curto espaço de um minuto.
Nada importa mesmo. Mas não contei a ninguém que ando profanando os segredos. Apenas o fiz, com a certeza de que nada, ninguém e coisa nenhuma vai saber.
De certa forma, matei. Uma ilusão, mas uma das poucas que me mantinha na ilusão da integridade. Foi como engolir lama. Essa, que eu posso ver de onde eu estou e suja tudo.
O universo é bege.
A gente é que brinca de classificar as cores.
Mas tudo é uma cor só, e uma tão sem graça e suja. Bege.
E eu não posso contar a ninguém do par de olhos sérios. Me pediu para destruir sua inocência. Na verdade, não foi isso que pediu, eu nem mesmo ouso repetir as palavras.
Mas eu só sei atirar as pessoas na lama mais suja. Não importa o que peça. No fim, vou apagar a luz da íris mais linda.
E por que?
Foi o que fizeram com a minha. Apagaram, devagar. Era para garantir que não sobrasse brasa.
Agora tudo é oco, e o universo é bege. Não sei se eu consigo surfar no caos. Só vejo lama, e ela me afunda, paralisa.
(Aqui, você me olha como aquele que sabe, exatamente, o lugar onde eu estou)
Eu não posso nem contar a ninguém do buraco de céu. Da íris mais linda. Eu já a fiz chorar. E vou fazer de novo. Pq errei uma vez.
E não existe borrão para o povo da lama.
(eu já disse que não preciso de coração?)
Eu o perdi, da última vez em que caí.
É por isso que me ofereceram um, agora. Meu dedos se esticam, mas não alcançam. Eu não saberia o que fazer, no fim, com isso.
Eu poderia devorar. Apagar a luz aí dentro, é o que todos fazem.
Mas meus dentes não conseguem mastigar.
Só vai sobrar a dor da máscara, que é minha, por nada poder contar. Nunca. A ninguém.
Eu perdi isso tambem, sabes?
A ilusão que alguém entenda.
Eu só não perdi a fome, que aumenta depois que se perde a luz. Talvez, justamente por que dói ainda, essa fome entranhada e escura, eu não possa devorar nada. Sobraram os arrependimentos.
E a íris linda disse que eu sou linda. Tenho direito de contar a verdade? Eu tento, mas estamos subindo a grande babel de lama. Posso tentar para sempre.
(E vc chora, por que sabe que é verdade, mas eu não deveria ter dito)
Talvez, um dia, maldita entre os malditos, eu possa subir e achar beleza em minha dor.
E a verdadeira beleza em aceitar que só há sujeira possa me impedir de engolir mais lama.
Ou me dê a ilusão de que a lama é doce, que o universo não é bege, mas é um grande arco-iris.
Não quero a ilusão, ela dura o tanto de um comercial de TV.
Eu queria o mar, mas meus calcanhares pesam com as coisas que eu escolhi, as que não quero, as que não largo pq foram tatuadas enquanto mentiam.
Não posso nem reclamar, pois aceitei alegremente.
E agora, alegremente me corrigem enquanto eu conto as verdades.
Choro pelo azul. Queria merecer o azul. Queria não pintar mais nada do bege-lama do universo.
As ondas podem ser azuis? Mesmo que muito escuras?
As cores não existem, são só nuances de um desejo.
O mesmo, normalmente.
E é nessa hora que eu devia rir. Embora não saiba se estou feliz.

Comentários

  1. Juro que li esse texto várias vezes...perdi a conta. Li pela manhã, tarde, noite e madrugada.
    Confesso que a cada leitura novos quadros formaram-se e, ao final, fiquei esvaziado, sem saber bem ao certo o que escrever ou dizer.
    Será que descobri um segredo? Ou interpretei errado o labirinto? Fico martelando isso...
    Acredito que as cores das ondas sejam como você descreveu: "o bege-lama do universo".
    Não importa ser bege-lama, pois a melhor parte é sentir e observar o mundo/pessoas sob uma nova dobradura. Como diria o sábio Zé Geraldo " isso tudo acontecendo e eu aqui na praça, dando milho aos pombos".
    O arco-iris é monocromático (para o desespero de um físico que ler essa afirmação).Viu? O Um é o múltiplo. Uma onda branca apaixonada. Ele deseja por todo custo uma gotícula de água. Até destrói com a sua unidade "primordial" para possibilitar a libertação das suas múltiplas formas.
    Entende?
    Mantenho o convite...

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  2. E você não quer publicar mais né!?
    Monocromático ou não, ainda existem cores, não se perdeu no breu.
    Mas eu me perdi no texto, um passeio esquizo, li, pisei na praia, afundei na lama e ainda bisbilhotei o universo em sua imensidão de pontinhos luminosos, voltei e comentei.
    Ufa

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  3. ensaiei várias coisas para escrever aqui, mas só uma cabe: eu-entendo-perfeitamente. vivo e sinto, mas sempre fecho os olhos, porque dá a ilusão de que a dor é menor.
    .
    tomei a liberdade de postá-lo em meu blog e, claro, coloquei o link do seu blog para as pessoas lerem mais dos seus escritos.

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